Lacrimae Rerum é o título de uma compilação de ensaios do esloveno Slavoj Zizek, recentemente traduzidos para português. Não li o livro, mas li a propósito disso uma entrevista com o autor no
Ípsilon — o suplemento das sextas-feiras do jornal
Público — que me deixou razoavelmente esclarecido.
A conversa é, tal como o livro, sobre filmes — que Zizek classifica como objectos pensantes — e é conduzida por Luís Miguel Oliveira. Zizek começa por ser apresentado como um dos grandes pensadores do momento: filósofo, psicanalista lacaniano e cinéfilo.
Este pensador muito em voga revela-se um porreiraço que não se assusta com as palavras. Dá a impressão de poder falar de tudo com o mesmo à vontade do fadista que canta à desgarrada. Qual mágico das palavras, na boca dele qualquer termo ou expressão pode significar o que ele bem entender, sem qualquer necessidade de explicação. Por isso pode dizer que os filmes são objectos pensantes e outras coisas do género.
Que os filmes são objectos que dão que pensar ou que estimulam o pensamento é algo que qualquer pessoa sabe. Mas não é isso que Zizek diz. Ele diz que os filmes são coisas que pensam, que é mais ou menos o mesmo que dizer que as pedras sonham e que os cheiros têm cor. Perante uma afirmação tão improvável, seria de esperar que o entrevistador o interrogasse sobre isso. Mas não! Como qualquer oráculo, Zizek não precisa de explicar o que diz e ninguém lhe pede tal coisa.
No início da entrevista Zizek descreve assim o modo como encara os filmes:
«Em primeiro lugar, focamo-nos na noção lacaniana do Real, não o “real” da “realidade”, mas o Real como um ponto traumático ausente».Entendido? Vejamos, o pensador em voga diz-nos que há dois reais, o real da realidade e o real ausente. Este é um ponto traumático que, por estar ausente, não está ali. Mas ali, onde? No filme, certamente. Portanto, quando vemos o filme focamo-nos no que não está no filme.
Ok, vamos interpretar isto caridosamente e vamos imaginar que os realizadores decidem fazer filmes porque têm alguma coisa para esconder. Bom, até é divertido, tentar descobrir no filme o ponto traumático que não está lá, apesar de ser naturalmente muito difícil de encontrar. No fundo é uma espécie de jogo das escondidas, em que o que se procura é o trauma que nos leva para um outro real.
Mas como é que isso se faz? Zizek exemplifica de forma magistral:
«Como é que esse Real se estrutura numa narrativa cinematográfica? Vou dar um exemplo: Short Cuts, de Robert Altman, um dos melhores filmes de Hollywood das últimas décadas. Como é que costuma ser lido? Como uma descrição das vidas desesperadas e alienadas da classe média suburbana. Isto é a narrativa. Mas se olhar com atenção para a textura do filme, vê outra coisa: umas sete ou oito linhas paralelas, uma espécie de ontologia contingente e aberta.»Ah, afinal o Real ausente estrutura-se na narrativa cinematográfica. Portanto, não está ausente, está ali no filme. Talvez esteja ali disfarçado, pois só aparece quando olhamos para a textura do filme. Bom, mas a textura é o mesmo que a trama ou o enredo. Mas, nesse caso, continuamos no domínio da narrativa, mesmo que se descubram sete, oito ou uma dúzia de linhas, sejam elas paralelas ou perpendiculares. Ou será que Zizek usa a palavra «textura» num sentido peculiar?
Talvez queira dizer que num filme não conta só a história que está a ser contada, mas também a forma como é contada e aspectos como o uso da cor e o contraste, o tipo de planos, a montagem, o som, os ambientes criados, etc. Mas isso é uma banalidade e podia tê-lo dito de forma bem mais simples e directa, sem precisar de falar de texturas e de linhas paralelas.
Mas os oráculos são mesmo assim: enigmáticos, mesmo quando declaram banalidades.
A propósito, se as linhas fossem perpendiculares em vez de paralelas, a ontologia contingente passaria a ser fechada em vez de aberta? É uma questão que Zizek não esclarece na entrevista, o que pode comprometer a compreensão de tudo o resto. Ficamos, contudo, a saber uma coisa: quando nos dizem que
Short Cuts de Robert Altman descreve as vidas desesperadas e alienadas da classe média suburbana, não ficamos a saber grande coisa acerca do filme de Altman, ao contrário do que acontece quando nos explicam que o filme revela uma espécie de ontologia contingente e aberta.
Isto é que tem interesse, pois não deve ser assim tão fácil observar espécies de ontologias contingentes e abertas. Só quem não souber o que é uma espécie de ontologia contingente e aberta é que não vai reconhecer isto, o que duvido que aconteça com o leitor destas linhas.
Claro que há outros tipos de ontologias interessantes, como as ontologias precisas, como nos revela Zizek a propósito de Hitchcock:
«Há toda uma teologia negativa em Hitchcock: Deus é mau, estúpido, ignorante. É uma ontologia precisa, que é também o que me interessa em David Lynch. O princípio de Veludo Azul: a câmara mergulha na relva e vemos a textura nojenta da superfície da realidade... agora vou parecer um velho estalinista... o que me interessa, como problema filosófico, é a estreita linha entre materialismo e idealismo. Materialismo não no sentido vulgar, mas como aceitação da contingência do mundo, emergindo daí o sentido, como em Altman.»Mais uma vez, Zizek utiliza o vocabulário filosófico de forma criativa. Verificamos que, para ele, uma teologia negativa é uma concepção de Deus em que Deus é o diabo. Bom, é ainda pior do que o diabo, pois é suposto este ser mau, mas não propriamente estúpido e ignorante.
Verificamos também que uma ontologia precisa é o mesmo que uma teologia negativa. E um exemplo de uma ontologia precisa é uma câmara a mergulhar na relva e a mostrar a textura nojenta da realidade, como nos mostra
Veludo Azul, de David Lynch. Note-se que aqui a textura já nada tem que ver com linhas paralelas; agora trata-se de algo visual.
Seja o que for, é isso que interessa a Zizek nos filmes de Lynch. E se interessa a Zizek, deve ser simplesmente interessante, pelo que deve interessar ao mundo inteiro. Caso contrário não precisava de o referir, tal como não refere se se interessa por filatelia ou se prefere antes a numismática. Tudo o que interessa ao oráculo tem interesse cósmico, como é óbvio.
E também é óbvio que a textura nojenta da realidade ilustra perfeitamente o problema filosófico que, mais uma vez, interessa Zizek, a saber, a linha estreita entre materialismo e idealismo. Mas como Zizek detesta utilizar as palavras no seu sentido filosófico vulgar, o materialismo de que fala não é outra coisa senão a aceitação da contingência do mundo. Isto torna evidente a necessidade de um bom dicionário filosófico zizekiano, caso contrário não seremos capazes de usufruir completamente dos filmes de Altman.
Aliás, esta aversão de Zizek ao sentido comum do vocabulário filosófico não é gratuita. Zizek detesta também escrever sobre o que os outros escrevem. Isso parece diminuí-lo como pensador e como artista das ideias. Ele quer falar do que lhe interessa e não do que interessa aos outros. Envergonha-se mesmo de escrever sobre o que interessa a muita gente, como confessa:
«Toda a gente fala de Hitchcock, já quase tenho vergonha de escrever sobre ele...»E não se pense que é por snobeira. Ele não vai à bola com os snobes, que também não compreendem nada:
«Alguns artistas contemporâneos um bocado snobs dizem: “Está bem, Hitchcock é isto tudo e tal e tal, mas se era assim tão bom porque é que não fez directamente objectos de arte? Porque é que se camuflou por baixo de simples histórias de crime?” A minha ideia é que o tipo de tensão dos filmes de Hitchcock só funciona se ficar ao fundo da superfície. Se ele dissesse “vou-me livrar da história dos detectives e fazer arte”, perdia-se tudo.»É curioso que, para Zizek, os snobes que se referem assim aos filmes de Hitchcock são artistas e não críticos de cinema. Não admira que não percebam grande coisa, pois são macacos em galho alheio.
O que, contudo, deixa uma mente linear como a minha intrigada é Zizek dizer que afinal sem a narrativa se perde também o Real ausente. Mas se ele é ausente, como pode perder-se? Ok, talvez Zizek queira dizer que, sem as histórias de detectives, Hitchcock não teria feito os filmes que fez. E se não tivesse filmado histórias de detectives, não poderíamos saber como os filmou, montou, como usou a cor, os sons, etc. Nisso concordo sem reservas com Zizek: se Hitchcock se tivesse livrado de fazer filmes, Hitchcock não teria feito filmes. Zizek é genial!
Quem não gostaria de ser amigo de alguém tão genial como Zizek?
Na verdade, até parece não ser assim tão difícil. Basta dizer, como o entrevistador, que Lubitsch é um grande realizador e que os seus filmes ilustram tudo aquilo que Zizek diz, para se abrirem as portas do mundo pessoal de Zizek:
«Ah, agora tenho a certeza que podemos ser amigos [ri-se e estende a mão]. Lubitsch é sagrado.»Isto parece confirmar que nada pode unir mais as pessoas do que a crença nos mesmos deuses. Sobretudo se essas pessoas estiverem prontas a adorá-los sem reservas. Quem disse que em filosofia nada é sagrado e que tudo merece ser criticamente avaliado? Disparate! Talvez haja muitos filósofos a dizer tal coisa, mas os filósofos não percebem grande coisa de filosofia.
Olhem mas é para os filmes, que está lá a filosofia toda. Olhem, por exemplo, para os filmes mexicanos de Buñuel:
«Mas conheço mal os filmes mexicanos. Mas Lacan dizia que eram os filmes definitivos sobre o ciúme.»E Zizek termina esclarecendo tudo isto de forma definitiva:
«Oh meu Deus, tenho que ver esse filme. No fundo nada me interessa mais do que o sexo.»Pelos vistos, Zizek está sempre a interessar-se por muitas coisas. Mas serão essas coisas filosófica ou intrinsecamente interessantes?
Bah, qual a relevância disso? O que é relevante é que Zizek se interesse por elas.
Seja como for, a última afirmação do pensador oferece-nos a chave para a compreensão do pensamento filosófico zizekiano.
Vejamos.
Disse no início da entrevista que o que mais o interessa como problema filosófico é a estreita linha entre o materialismo e o idealismo. E agora termina declarando que no fundo nada mais o interessa do que o sexo. Portanto, o problema da linha entre o materialismo e o idealismo é um problema sexual.
E depois há quem pense que os
Gato Fedorento são criadores geniais de humor. São o tanas! Eles passam é o tempo todo a copiar. O que vale é que os Zizekes são uns tipos porreiros e descontraídos, caso contrário os gatos ainda apanhavam com um processo em cima.