O perfeccionismo linguístico distingue-se do purismo linguístico. No primeiro trata-se apenas de trazer maior racionalidade à língua, enriquecê-la, cultivá-la, de uma maneira inclusiva, clara, aberta, ou seja, de comunicar inteligivelmente coisas complexas. O segundo nada tem a ver com a racionalidade e é frequentemente irracional. Trata-se de rejeitar algo apenas por se imaginar que é «alienígena». Assim, corrigir «fisicalismo» para «fisicismo» não é purista, embora seja perfeccionista. Não se está a recusar uma palavra nova, para a qual não temos equivalente no nosso léxico, em função de um nacionalismo linguístico, apenas a traduzir um termo filosófico de uma maneira consistente com as nossas regras gramaticais, usando uma palavra que já temos, em vez de fazer enxertos desnecessários.
Um exemplo de purismo encontra-se num artigo que descobri no site Ciberdúvidas, sobre o uso da preposição «em» + adjectivo, com valor adverbial. Por exemplo: «em absoluto», «em aberto», «em concreto», «em particular», «em anexo», etc.
A única justificação dada pelo autor do artigo para repudiar este uso em português é a de tratar-se de uma influência francesa ou espanhola. Em português, segundo o autor, deveríamos usar apenas um advérbio ou um adjectivo em todas as situações em que normalmente usamos «em» + adjectivo, com valor adverbial. Mas isto deixa de fora uma pergunta óbvia: o que faz que isso seja disparatado em português mas não em castelhano (en particular), italiano (in particolare), francês (en particulier), inglês (in particular), neerlandês (in het bijzonder), alemão (insbesondere), romeno (in special) [...] etc.? Qual é a razão que explica o carácter disparatado dessa construção em português?
Não consigo encontrar razão alguma, excepto o purismo linguístico. A ideia irracional de que é preciso rejeitar uma certa construção, não por haver boas razões contra ela, mas porque queremos desta maneira garantir ou preservar a imaginária vernacularidade do português. Consigo inclusive pensar em razões para usar esta construção: «questão aberta» e «questão em aberto» não são a mesma coisa. (Claro que em muitas situações não haverá diferença, mas isso não é razão para rejeitar completamente este uso). É por isto que afirmei no meu artigo sobre plantas «sempervirentes» e decíduas que a questão tem um lado político: o purismo introduz diferenças onde essas diferenças não existem (em castelhano usa-se sem problemas aquela construção), estas diferenças artificiais causam um afastamento linguístico que não obedece a uma exigência de racionalidade ou comunicação, mas de pura fantasia e nacionalismo linguístico. Resumindo: corrigimos as nossas crianças quando dizem «mais grande» não porque isso tenha algum mal, mas porque alguém que sofreu uma lavagem cultural ao cérebro nos lavou a nós o cérebro, para que lavemos o cérebro às nossas crianças, e assim sucessivamente, apenas para não escrevermos frases que soam a castelhano - «más grande».
Todavia, concordo com o autor no que se refere ao uso de «em» + advérbio, por exemplo «x ultrapassa em muito y» -- aqui podemos perfeitamente escrever «x ultrapassa muito y». Neste caso não se trata de purismo mas de perfeccionismo, pois estamos a aumentar a racionalidade.
16 de maio de 2009 ⋅ Blog
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