Há tantas maneiras de tentar silenciar ideias que não nos agradam que seria pouco prudente tentar fazer uma lista de todas elas. Mas vale a pena falar de duas delas.
Ambas pertencem à falácia da mudança de assunto e ocorrem quando alguém ouve ou lê uma ideia qualquer de que não gosta, e que não quer sequer ver discutida. Não se trata de pensar que a ideia é errada e de aproveitar a ocasião para esclarecer as pessoas e apresentar ideias opostas; trata-se de não querer que tais ocasiões surjam. Um observador cínico poderá pensar que a pessoa no fundo desconfia que não há realmente boas razões para pensar o que ela pensa, mas desagrada-lhe mudar de ideias como a qualquer pessoa sensata desagrada mudar de casa por causa de todos os transtornos que isso provoca. Mas não interessa realmente saber que motivações psicológicas tal pessoa terá. O que conta é que o resultado é o silenciamento, se nos deixarmos ir na conversa.
E como se faz o silenciamento? De pelo menos duas maneiras principais.
A primeira ocorre nos meios intelectuais, ou entre pessoas que gostam de ser consideradas intelectuais: aqui, usa-se a cultura como arma de arremesso. E então diz-se coisas do género “Você já leu X? Não? Então cale-se!” A ideia é X ser um autor denso ou difícil ou obscuro, pelo que é elevada a probabilidade de a outra pessoa não o ter lido e se calar por ficar envergonhada. Evidentemente, isto só funciona quando as pessoas realmente são vaidosas e têm vergonha de dizer que não leram. Se isso não ocorrer, ou se por azar a pessoa tiver lido, a tentativa de silenciamento é gorada.
A outra ocorre na vida pública, que me parece cada vez mais acéfala: aqui, usa-se a ideia de que os nossos direitos estão a ser atropelados. Toda a gente passa então a discutir esta outra ideia, e não a original. Foi o que ocorreu no caso do Saramago. As pessoas que discordam dele poderiam ter aproveitado a ocasião para explicar por que razão discordam da leitura que ele faz da Bíblia. Mas não foi isso que se fez; o que se fez foi bater no peito dos direitos atropelados, como se o grande Nobel marxista estivesse a atropelar direitos. E mudou-se de assunto.
Poder-se-ia pensar que seria mais honesto dar ordem de silêncio, em vez de falar de autores eruditos ou de invocar imaginados direitos atropelados. E seria. Só que seria também menos eficaz, porque ninguém daria ouvidos a tal ordem. Ao passo que introduzindo o ruído do autor que não se leu ou dos direitos atropelados, passa-se a discutir outra coisa e silencia-se a discussão original — e era precisamente isso que se queria desde o início.
8 de novembro de 2009 ⋅ Blog
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