2 de dezembro de 2009 ⋅ Blog
O macaco nu
Desidério Murcho
É curioso como a categoria simiesca do “superior” surge tão espontaneamente em tantas conversas. Basta alguém dizer uma verdade desagradável sobre a humanidade para se acusar essa pessoa de se armar em superior. Mas isto é presumir desde o início que a categoria macacal do “superior” é relevante. Ora, a verdade é que o não é. “Superior” quer apenas dizer “ser mais catado pelos outros” (“ter mais prestígio social,” alguns milhares de anos depois), e isso nada tem a ver com ter um pensamento mais ou menos sofisticado, cuidadoso e articulado. Michael Jackson tinha e continua a ter muitíssimo mais prestígio social, ou seja, era e é superior, a Platão. Mas nem por isso o pensamento de Platão é menos articulado, sofisticado ou cuidadoso do que o pensamento de Michael Jackson.
Subscrever:
Enviar feedback
(
Atom
)
Arquivo
-
▼
2009
(391)
-
▼
Dezembro
(35)
- Jornal Público não adopta acordo ortográfico
- Ainda sobre a autenticidade na música
- Escola e ensino
- Autenticidade musical e efeito estético
- A arca de Baxter
- Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?
- Lógica, filosofia e o seu ensino no secundário
- Justificação de crenças
- Aaron Ridley
- Reboot
- Colher os louros e recusar a culpa
- O Dilúvio de Baxter
- Quando o público é privado e o privado público
- Filosofar para quê?
- Mais filosofia da mente
- Educação e igualdade
- Crato e pós-modernismo, Darwin e Marx
- Os melhores de 2009
- Filosofia da linguagem
- O ensino da filosofia e a sociedade é que não me d...
- A sociedade é que não me deixa
- Representar a mente
- O ensino da filosofia
- Precisa a ciência da filosofia?
- O deus da evolução
- Operadores de crença
- Por que não acredito no aquecimento global
- O erro é de Russell?
- Esquecimento global
- O que fazer com este azar cósmico?
- Constituição
- Lógica no ensino secundário?
- Uma ilusão metodológica recorrente
- O macaco nu
- Pensamento moral
-
▼
Dezembro
(35)

2 comentários :
Um post curto mas que dá pano para mangas, caro Desidério. Em primeiro lugar, o conceito de "superior" abrange mais do que mero prestígio social e é no sentido de que não falas que o considero mais interessante. Falo do homem como animal "superior" numa hierarquia já não social mas, se assim lhe quisermos chamar, taxonómica (homo sapiens sapiens, ou seja, o equivalente a "homem superior superior"). Mas é curioso que fales de Platão porque é precisamente a partir dele que podemos ver onde entram em contacto as duas espécies de superioridade. Foi efectivamente Platão o primeiro a desenvolver o dualismo ontológico (alma/corpo), que está na base da nossa noção de superioridade por comparação ao animal. O curioso é que (ponto controverso, concedo, mas plausível) esta noção só foi transposta para o campo social com a invenção do esgoto. Como diz o grande Dominique Laporte na sua obra "Histoire de la Merde", o homem tornou-se divino quando se sentou na retrete, que esconde dos olhos de todos os seus dejectos e torna a superfície do mundo enganadoramente pura. Antes disso, como todos sabem, era abrir a janela e "água vai". A superioridade do homem em relação ao animal, vindicada por Platão, tornou-se social (sem deixar de ter um fundo ontológico) quando os ricos passaram a dar a impressão de que não defecavam, por possuirem retretes. Já havia diferenças sociais antes, claro, mas a divinização da nobreza só ficou completa quando os plebeus e os animais passaram a ter em comum o facto de terem de caminhar no mesmo plano que os seus próprios dejectos. Com a difusão mundial da sanita o homem tornou-se definitivalmente superior ao animal (algo de que mesmo o socialmente infortunado se pode hoje gabar, dado que a casa de banho já não é um luxo). Resultado: todos os homens nascem iguais. Mas Montaigne já dizia que mesmo o rei do trono mais elevado do mundo "se senta em cima de um cu". O Homem superior ao animal e os homens superiores uns aos outros são, no fundo, almas puras para as quais o corpo está como a sanita está para o corpo, por assim dizer. Não dizia Deleuze que o ânus é a porta do ser? Quanto à comparação Platão/Michael Jackson julgo não ser a melhor. É óbvio que o pensamento de Platão é mais estruturado do que o do MJ mas o MJ não era um pensador e por esse motivo não é inferior nem superior a Platão. Um dançava, o outro não. Além disso, não havendo sequer um equivalente ao fenómeno MJ no séc. III a.C., não é possível estabelecer paralelos mesmo com "entertainers" da época. Em todo o caso gostei do que li. E fica o convite: visita o meu blog para veres como fica a Filosofia quando se retira a retrete à Razão.
Homo sapiens sapiens não quer dizer “homem superior superior”. Quer dizer “homem sábio sábio”. Designação pouco sem dúvida pouco sábia, mas que nada tem a ver com superioridades porque nada tem a ver com hierarquias sociais. Ser mais sábio não é ser superior. A maior parte das pessoas mais sábias da humanidade não eram superiores aos mais tolos do seu tempo.
Não foi Platão que inventou as hierarquias sociais. Elas existiam já e continuam a existir em todas as sociedades humanas, mesmo naquelas que nunca ouviram falar de Platão. Por exemplo, a civilização chinesa não ouviu falar de Platão durante milénios, mas nem por isso se encontrava nela a ausência do sentido macacal das hierarquias sociais.
O predicado "superior" é puramente social e quando é usado de modo a incluir outro conteúdo obscurece o que se quer dizer e associa parvamente uma propriedade relevante (sofisticação ou subtileza de pensamento, por exemplo) com outra irrelevante (estar acima nas hierarquias sociais). O meu post chama a atenção para isto.
Publicar um comentário