Por volta de 1996-97, o Ministério
da Ciência e Tecnologia ofereceu um computador ligado à internet, por rede
analógica, a todas as escolas básicas e secundárias do país. Coincidiu com o
meu primeiro ano como professor do ensino secundário, após a conclusão do meu
estágio profissional. Nesse ano tive uma colocação na pequena e pacata cidade
de Lamego. A saída da festa da grande cidade foi alimentada por livros (os
primeiros volumes da Filosofia Aberta estavam já no mercado) e pelas noites que
passei na biblioteca da escola, após as minhas aulas do dia, sozinho, com a
descoberta de centenas de textos de filosofia que antes só muito
esporadicamente tive acesso. Uma das minhas descobertas foi o trabalho de Desidério
Murcho e dos primeiros passos da Crítica. Na altura, confesso, interessavam-me
particularmente das análises críticas ao ensino e ao trabalho dos professores de filosofia. Nunca me passou pela
mente, nessa altura, que viria a trabalhar directamente com a Crítica. Uns anos
mais tarde estive ausente do ensino da filosofia, tendo regressado por volta de
2005, ano em que contactei de novo com a Crítica e com o manual A Arte de Pensar.
Estes contactos seriam a consolidação definitiva já dada com os livros da
Filosofia Aberta. Em 2006 já visitava várias vezes por dia a Crítica sempre na
ânsia de descobrir novos artigos, novas traduções, que lia com um aguçado e
renovado apetite pela filosofia. Pela primeira vez tinha um lúcido encontro com
a filosofia. O nome Aires Almeida, nessa altura, ainda era muito desconhecido
para mim, mas tive a sorte do Aires se deslocar à ilha da Madeira, onde resido,
para fazer um workshop sobre avaliação em filosofia. Foi também a primeira vez
que assisti em directo a uma versão plausível de verdadeira didáctica da
filosofia, coisa que não tinha observado durante o curso na Universidade.
Muitas das coisas ali ensinadas e trabalhadas vieram ao encontro das minhas
necessidades como professor e profissional da filosofia e muitas mais colocaram
em causa os modelos que até então eu adoptara para avaliar em filosofia.
O Aires no final dessa acção de
formação deixou um endereço de e-mail. Quando cheguei a casa apressei-me a
escrever-lhe. Não mais o larguei. Ainda hoje recordo um pequeno ensaio de ética
que escrevi só para pedir uma correcção ao Aires. De tantos tiques académicos
que o artigo tinha, veio cheio de vermelho. Dei-lhe muitas voltas e acabei por
desistir. Aquilo não era de facto forma de se pensar filosoficamente.
Decorria ainda o ano de 2005 (se
não me engano) e comecei a planificar as minhas aulas de filosofia das quais me
ausentara durante quatro anos. Peguei no programa da disciplina e no então
acabado de homologar documento sobre as Orientações de Leccionação do Programa
de Filosofia e no manual que estava adoptado na escola onde me encontrava a
ensinar. Em dois tempos me apercebi que o manual era completamente incompatível
com o documento das orientações. Telefonei a um amigo e colega, autor de
manuais de filosofia, que me disse o seguinte: “deita todos os manuais que tens
ao lixo e pega no Arte de Pensar” (note-te que este autor não é autor do manual
A Arte de Pensar, mas de um manual muito distante do Arte). Escrevi á editora
do Arte a pedir o manual e a resposta foi que uma vez que o manual não estava
adoptado pela minha escola, teria de comprar com um desconto generoso. A
revolta não se fez esperar e o imediatismo e falta de tolerância da minha parte
fez-me reagir de uma forma violenta com uma teoria da conspiração que, mais
tarde me apercebi, causou muita conversa no ensino da filosofia. Quando cheguei
à escola dei com o manual A Arte de Pensar. Não recordo bem, mas creio que na
altura nem reparei bem que o Desidério Murcho era um dos autores. Levei o
manual para casa e coloquei-o, com um sentido de obrigação contrariado, em cima
da mesa-de-cabeceira. Recordo que nessa mesma noite me deitei já cansado e
peguei pela primeira vez no manual. Não sonhava sequer que estava a começar uma
gigante revolução na minha forma de ensinar filosofia aos estudantes do ensino
secundário. Nessa noite li o Arte quase de enfiada. Apaguei a luz do quarto com
a cabeça demasiado ocupada: como é possível que aquilo que acabara de ler
encaixasse tudo tão bem? Onde é que eu tinha andado? Eram nomes e mais nomes de
filósofos que eu nunca tinha ouvido falar, argumentos claros e bem expostos,
uma escrita absolutamente centrada na filosofia, coisas a fazerem sentido na
minha cabeça. Aquilo era muito mais que um delírio interpretativo das coisas:
era raciocinar à brava! Era filosofia e o que eu sempre procurei na filosofia:
lucidez, clareza, esclarecimento, rigor. Carambas, farto de conversa fiada
andava eu. Sempre soube que era um engano. Que vergonha senti! Um modus
tollens? De facto falaram-me nisso nas aulas de lógica no curso, mas nunca
tinha percebido para que é que tal coisa servia.
O resto do percurso é público.
Nesse mesmo ano senti-me de tal modo confortável com a filosofia que comecei a
sair da caverna e a deixar de ter medo de falar de filosofia. Não perdia uma
oportunidade de falar da minha disciplina. A vergonha (que ainda hoje a sinto)
é que aprendi filosofia com um manual para adolescentes e com uma revista que
tinha imensos artigos interessantes a devorar.
Em 2007 tive a sorte de fazer uma
formação em lógica com o próprio Desidério. Nessa altura eu já tinha
consolidado o que queria fazer com a filosofia, mas faltava-me afinar um
instrumento, a lógica. Sem ela, ser-me-ia mais difícil aceder a determinados
conteúdos. A formação do Desidério veio a calhar. Nesse mesmo ano e seguinte comecei
a olhar para os manuais de filosofia e a reparar que uma boa parte deles tinham
erros grosseiros, coisas que não ofereciam qualquer consistência e rigor, razão
que me levou a querer publicar análises aos manuais.
O Desidério anunciou-me o fecho
da Crítica. Não o lamento. Nunca esperei que durasse sequer tanto tempo. Eu
próprio já teria provavelmente desistido antes e só um grande amor á filosofia
pode explicar a dimensão do trabalho. Como eu disse ao Desidério quando ele me
anunciou que iria encerrar a revista, “ A Crítica foi a minha Oxford de
filosofia”. E foi.
Foi na Crítica que tirei o meu
curso de filosofia. E ao trabalho da Crítica, de todos os autores que lá
publicaram, ao Desidério Murcho tenho aqui publicamente a oportunidade de
manifestar a minha enorme gratidão. O conhecimento é de facto a melhor dádiva
que um ser humano pode oferecer a outro. Mesmo não sendo muito dado a
homenagens, teria de agradecer publicamente tudo o que esta revista me deu.
Parabéns a todos. Obrigado. Agora, toca a estudar.
1 comentário :
Muitíssimo obrigado, Rolando!
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