Acabei de ler no suplemento Ípsilon, do Público de hoje (sem ligação), a desenvolvida recensão de David Teles Pereira (DTP) ao mais recente livro de Nigel Warburton, Pequena História da Filosofia (Edições 70).
Em primeiro lugar, é de sublinhar o facto de, ao contrário do que é frequente na crítica portuguesa, o crítico não se limitar a escrever quase só para si próprio nem a utilizar o que tem pela frente como um mero pretexto para exibir o seu arsenal cultural. Ao invés, apresenta de forma clara e directa aqueles que, em sua opinião, são os pontos fracos e fortes do livro de Warburton, sem deixar de descrever abreviadamente o que nele podemos encontrar. É isso que se espera de uma boa recensão.
Até aqui, e já não é pouco, tudo bem. Quanto ao resto, parece-me que o crítico acerta quase sempre ao lado. Mas nada há de especial em eu não concordar com as principais críticas do autor da recensão. A discordância é normal e até saudável. O que me leva aqui a falar disso não é, pois, o facto de não concordar com o crítico; é o tipo de crítica a livros deste género que, por ser praticamente infalível, se tornou num lugar-comum que nos deixa quase como estávamos antes de a ler.
Assim, criticar um livro intitulado Pequena História da Filosofia por ser lacunar e redutor tem quase tanto cabimento como criticar um mota por falta de bagageira e má insonorização. Até os próprios autores de livros do género se dispensam já de prevenir, no respectivo prefácio, esse tipo de objecções. Mas só refiro aqui isto porque é um tipo de objecção que, em relação a livros deste género (livros de história, introduções, guias, etc.), se encontra demasiadas vezes entre os críticos portugueses. Por isso, refiro aqui a recensão de DTP apenas como um exemplo e não como assunto central deste post.
Pelo que tenho verificado, classificar um livro como lacunar e redutor, quase sempre quer dizer que o crítico não encontra lá tratados os seus autores preferidos, ou que não lhes é dado suficiente destaque, confundindo os seus autores preferidos com os autores mais importantes e influentes. Ocorre-me, a propósito, a indignação de um professor meu da faculdade, que achava incompreensível a generalidade das histórias da filosofia e dos dicionários filosóficos não referirem (ou o fazerem só de passagem) o pensamento social de Jean Meslier, um padre e filósofo jesuíta do século XVIII sobre o qual ele estava a escrever a sua tese de doutoramento.
Tive o cuidado de utilizar a expressão «quase sempre», pois haverá casos em que tal crítica se justifica. E até poderíamos estar perante um caso desses. Uma história da filosofia, por muito pequena que seja, seria, sem dúvida, lacunar se não referisse nomes tão importantes e influentes em diferentes áreas da filosofia como Aristóteles, Descartes ou Kant. Pode até ser discutível incluir Darwin e Freud e omitir Heidegger e Husserl (omissão apontada por DTP e que, por uma vez, me parece justa), mas criticá-la por «não aparecer uma única pensadora da terceira vaga feminista» ou por não incluir autores da filosofia islâmica e judaica é não compreender bem o que está ali em causa. Imagine-se só se Warburton tratasse de uma boa parte dos autores que DTP acha que deveriam lá estar, a saber, Maimónides, Avicena ou Averróis, Isidoro de Sevilha, o Papa Gregório I, Al-Farabi, Dante, a escola de Salamanca, Jean Bodin, Hugo Grócio, Max Weber, Émile Durkheim, a escola da Frankfurt e mais algum pensador socialista do século XIX, além de Marx. Para compensar, a sugestão de DTP parece ser a de descartar Berkeley, Montesquieu e Thomas Reid.
Claro que o crítico pode achar mais interessantes Isidoro de Sevilha, o Papa Gregório I e Émile Durkheim do que Berkeley e Montesquieu, mas apontar isso como crítica às escolhas do autor é simplesmente descabido. E, claro, acrescentaria por sua vez o leitor, a incluir Isidoro de Sevilha, por que não incluir também o não menos importante e omisso Guilherme de Occam, entre muitos outros? A incluir toda esta gente, o crítico ficaria então com boas razões para criticar a parte do título que diz «Pequena». A não ser que Warburton fosse ainda mais redutor do que o crítico aponta, dedicando apenas duas páginas a cada um.
A propósito, DTP dá alguns exemplos de passagens em que o autor é redutor. Mas, a julgar pelos exemplos apresentados, o crítico parece ignorar que Warburton procurou fazer o que Gombrich fez com a sua popularíssima Uma Pequena História do Mundo, destinada a jovens sem grandes conhecimentos prévios sobre o assunto. Tal como Gombrich, também Warburton procura prender o jovem leitor com algumas curiosidades biográficas sobre os principais protagonistas, de modo a tornar a leitura mais agradável. Se resultar, como resulta com Gombrich, então é um ponto a favor do livro de Warburton e não um defeito.
Em suma, sem dúvida que o livro tem lacunas e é redutor, como sucede inevitavelmente com todos os livros. Até porque esta História poderia ser grande, em vez de pequena. Fica assim garantido que o crítico tem sempre razão.