Do Belo MusicalNada impediu tanto o desenvolvimento científico da estética musical como o valor excessivo que se atribuiu aos efeitos da música sobre os sentimentos. [...] O elementar da música, o som, e o movimento é o que acorrenta os sentimentos indefesos de tantos afeiçoados da música, cadeias que eles de bom grado fazem retinir. [...] É muito significativo o número dos que ouvem ou, em rigor, sentem deste modo a música. Ao permitir que o elementar da música actue neles em passiva receptividade, ficam enredados numa vaga agitação, imperceptivamente sensível, determinada apenas pelo carácter da peça musical. O seu comportamento perante a música não é contemplativo, mas patológico; um contínuo crepúsculo, sentir, entusiasmar-se, uma grande ansiedade no nada sonoro. [...]Aninhados e semidespertos no seu sofá, aqueles entusiastas deixam-se levar e embalar pelas vibrações de sons, em vez de os examinarem com olhar agudo. Quando eles crescem e aumentam cada vez mais, quando diminuem, irrompem em júbilo ou trémulos se apagam, transportam esses entusiastas para um estado sensitivo indeterminado que eles, ingénuos, julgam puramente espiritual. Constituem o público mais "agradecido" e apropriado para desacreditar com maior segurança a dignidade da música. O seu ouvido é desprovido do indício estético da fruição espiritual; um bom cigarro, um pitéu picante, um banho morno fornecem-lhes inconscientemente o mesmo que uma sinfonia. Desde que fique tranquilamente sentado sem pensar seja no que for até ao arrebatamento hilariante, o princípio é o mesmo: o prazer do elementar da música. A época actual trouxe, além disso, uma descoberta magnífica que supera de longe a música para os ouvintes que, sem qualquer actividade espiritual, apenas buscam nela a sublimação sentimental. Referimo-nos ao éter sulfúrico. A narcose do éter provoca em nós um inebriamento agradabilíssimo, progressivo, que vibra como um sonho doce através do organismo -- sem a a vulgaridade do consumo de vinho, que também não deixa de ter o seu efeito musical.Perante semelhante concepção, as obras de arte sonora contam-se entre os produtos naturais cuja fruição nos pode arrebatar, mas não obrigar-nos a pensar, a pensar segundo um espírito conscientemente criador. O doce aroma de uma acácia pode inalar-se mesmo com olhos fechados, sonhando. Mas recusam-se a tal os produtos do espírito humano, a não ser que tenham de descer ao nível de estímulos naturais sensíveis.
8 de janeiro de 2013 ⋅ Blog
Hanslick sobre apreciação musical
Aires Almeida
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