"Campo de Trigo com Corvos" de Van Gogh (Wikipédia)
24 de Fevereiro ficará para a História
como a data mais terrível das nossas vidas?
Será o princípio do fim?
Será que a pena é mais poderosa do que
a espada?
Pelo menos esta última questão parece
fazer sentido para algumas personalidades que têm escrito sobre este momento
único.
Eis então aquilo que escreveram algumas
personalidade como Peter Singer, Steven Pinker, Yuval Noa Harari, em breves
resumos.
Peter Singer
Peter Singer traça um paralelo entre as
invasões de Hitler e as de Putin. Para além desse texto, divulgou também nas
redes sociais um apelo de um filósofo ucraniano, para que outros
filósofos publiquem no site criado para esse efeito: Filósofos pela Ucrânia (conta já, entre outros, com um texto de Martha C. Nussbaum).
“De Munique a Moscovo”
Por Peter Singer
Resumo: Nos prenúncios da Segunda Grande Guerra,
Hitler invadiu a Checoslováquia, violando de seguida o Acordo de
Munique, Putin fez o mesmo, começando com a anexação da Crimeia e violando de
seguida o Memorando
de Budapeste. A inacção do mundo outrora face à Checoslováquia, foi também semelhante à
que se verificou na actualidade face à Crimeia. Depois seguiu-se o resto da
Ucrânia e fica no ar a questão se outros estados com minorias que falam russo
se irão seguir, como no caso das sucessivas invasões de Hitler. Mas com uma
agravante, Putin detém um vasto armamento nuclear.
Como se pode então parar Putin? Medidas
como sanções económicas e boicotes irão afectar todos os russos, inclusive
aqueles que se opõem à guerra.
Haverá outra maneira de parar Putin? Os
especialistas acreditam que uma vitória militar russa é
inevitável.
Perante isto fez-se o apelo aos russos
para que parem a guerra (e tem-se assistido por parte dos russos a inúmeros protestos, petições e até apelos à
insurgência).
A seguir é necessário que os soldados russos
parem de combater uma guerra injusta. Matar intencionalmente pessoas sem causa
suficiente é homicídio e obedecer a ordens não é desculpa, tal como não era
desculpa para os que estavam sob o comando de Hitler.
Tornar a Rússia numa pária internacional e
implementar sanções suficientemente fortes é especialmente injusto para aqueles
que se têm oposto publicamente à guerra. Mas de que outra forma poderão estes
esperar substituir Putin por alguém que esteja preparado para cumprir os
princípios morais e o direito internacional?
*
Daily Nous
Respondendo ao apelo do Daily Nous,
algumas filósofas e filósofos que têm trabalhado no âmbito da ética da guerra
escreveram breves ensaios sobre a invasão da Ucrânia por parte da Rússia (via Pedro
Galvão):
“Ética de Guerra e a
Invasão Russa da Ucrânia”
por Saba Bazargan-Forward
Resumo: A Ucrânia pode estar a violar um princípio
basilar da ética da guerra: como não se rende, está a provocar derramamento de
sangue ineficaz e desnecessário.
Este texto defende três razões que
contrariam esta ideia:
- Ao impor um custo elevado à parte agressora,
perante uma agressão internacional injusta, torna menos prováveis
agressões do mesmo tipo no futuro.
- A decisão de não se render não viola os direitos
dos civis que poderão vir a ser mortos, caso esses civis indiquem
previamente estarem dispostos a aceitar esse risco (o que parece ser o caso).
- Ao enfrentar adversidades esmagadoras, o povo
ucraniano estaria a servir outro propósito útil e moralmente importante:
preservar o seu amor-próprio.
Assim, mesmo que não se acredite que a
resistência ucraniana venha a ser bem sucedida, esta não viola o princípio do
derramamento de sangue desnecessário e pode valer a pena.
Aponta também outras questões no âmbito da
ética da guerra:
- Será que os combatentes russos, ao empreenderem
uma guerra injusta, estão a violar os direitos dos soldados
ucranianos?
- Será que os EUA têm legitimidade moral para
criticar a agressão da Rússia, dada a base duvidosa para a guerra no
Iraque, liderada pelos EUA em 2003?
- Que deveres de ajuda têm outros países em relação
à Ucrânia -- especialmente os países que enriqueceram a Rússia e assim
financiaram indirectamente as suas forças armadas através da compra de
petróleo e gás russo?
“Por Que Devem os Soldados
Russos Baixar as Suas Armas”
por Jovana Davidovic
Resumo: Há quem defenda que não se pode responsabilizar os
soldados por lutarem em guerras injustas, seja com base no consentimento, na
ignorância ou na estabilidade institucional. Poderíamos apenas
responsabilizá-los pela maneira como lutam nas guerras. Ou seja, são
responsáveis por aquilo que está sob o seu controlo, mas não simplesmente por
lutarem em guerras injustas.
No entanto, face à invasão russa da
Ucrânia, os argumentos do consentimento e da ignorância e o argumento da
importância da obediência, falham. Assim, em vez de se defender a
responsabilização legal dos soldados que lutam em guerras injustas, sugere-se
algo mais imaginativo: a objecção
de consciência selectiva. Isto também para se mudar as normas sociais de como elogiamos os nossos
soldados e para parar de se encorajar que lutem em guerras injustas.
“O
Armamento de Rebeldes Democráticos no Estrangeiro”
por Christopher J. Finlay
Resumo: Caso as coisas fossem mais simples, o que
seria correcto fazer seria óbvio: as democracias deveriam defender os direitos
de um estado soberano sob ataque, enviando as suas forças militares para ajudar
na defesa nacional.
Mas face a uma potência que já demonstrou
estar pronta a usar armas nucleares, é necessário considerar o perigo de
intensificação e alargamento do conflito.
No entanto, tendo em conta os vários
cenários possíveis, disponibilizar armas para que um estado sob ataque se possa
defender, sem dúvida acarreta uma série de riscos, mas a não intervenção também
acarreta riscos.
Assim, essa ajuda deve vir o mais breve possível,
aproveitando a força democrática ainda presente no terreno.
“Ucrânia e a Ética da
Guerra”
por Helen Frowe
Resumo: Em geral devemos resistir à distinção
entre mortes de civis e de combatentes: não é moralmente melhor matar
combatentes que promovam fins injustos do que civis. E há até uma aspecto
importante em que matar combatentes é moralmente pior do que matar civis, pois
matar combatentes não é apenas errado em si, mas também é um meio de atingir
males maiores.
O facto de neste caso a defesa ser travada
em larga medida por pessoal recrutado e civis torna ainda mais perniciosa a
natureza desta distinção.
Ao condenar as mortes, enfatizando que se
tratam de civis, damos um ar de legitimidade aos alvos militares. Mas devemos
ser categóricos: a Rússia não tem alvos legítimos nesta guerra.
Ninguém nas forças armadas ucranianas,
constituídas por recrutas e civis que se alistaram por causa da ameaça Russa,
abdicou dos seus direitos comuns contra agressões por estar a defender o seu
país e os seus concidadãos, portanto as suas mortes não contam menos do que as
mortes de civis desarmados.
Travar uma guerra não é moralmente
independente do facto de ser justa ou não. Em geral,
também devemos resistir à ideia de
que a guerra responde a princípios morais diferentes daqueles que nos governam
normalmente na vida quotidiana, em que não é permissível usar a força para
tentarmos obter algo a que, desde logo, não temos direito e nada muda quando
essa força é empregue por estados ou colectivos políticos.
*
Steven Pinker
Num artigo que pretende responder à
pergunta: Será que a guerra Russa com a Ucrânia é o fim da Longa Paz? Steven
Pinker começa por referir a amarga ironia do seu livro “Os Anjos
Bons da Nossa Natureza -- Porque tem declinado a violência” estar agora a ser impresso na sua
tradução ucraniana. Numa outra publicação faz também referência ao valioso contributo
do Our World in Data ao providenciar todo o tipo de dados para
contextualizar a guerra da Ucrânia.
“Será que
a guerra Russa com a Ucrânia é o fim da Longa Paz?”
Por Steven Pinker
Resumo: A Longa Paz (o declínio das guerras entre
estados desenvolvidos desde a Segunda Guerra Mundial) não é inevitável. Dos
cinco contributos para a paz referidos nos “Bons Anjos”, três aplicam-se à
Rússia (o comércio inter-estatal, a participação em organizações globais e a
ilegalização das guerras de agressão por parte das Nações Unidas), mas duas não
(a Democracia, pois a Rússia é uma "autocracia eleitoral" e o
Humanismo do Iluminismo -- a convicção de que o bem último é a vida, a
liberdade e a felicidade dos indivíduos).
Sendo a Ucrânia o país
mais pobre da Europa, significa que, por definição, a Longa Paz ainda não foi quebrada, pois
mantêm-se a zeros os restantes requisitos: guerras nucleares, guerras entre
grandes potências e guerras entre países ricos.
No entanto, aquilo que parece ser a
obsolescência da guerra inter-estatal depende da promoção das forças do
iluminismo que levaram a violência ao declínio, incluindo a valorização da vida
humana e as normas e instituições de cooperação global.
*
Yuval Harari
O reconhecido historiador e best seller,
Yuval Harari, reflecte sobre como este evento único pode mudar o curso da
história. Expande também alguns desses pontos de vista nesta entrevista TED.
“O que está em jogo na
Ucrânia é a direcção do curso da história humana”
Por Yuval Noa Harari
Resumo: Coloca a questão: Será possível mudar? Ou
a crise na Ucrânia demonstra que o ser humano está condenado a repetir para
sempre as tragédias passadas?
Uma escola de pensamento nega a
possibilidade de mudança e afirma que, quem não acredita na lei da selva, está,
ingenuamente, a colocar-se em risco.
Uma outra escola de pensamento argumenta
que a lei da selva não é natural, mas sim feita pela humanidade e que por isso
a mudança é possível e já está a ocorrer por todo o lado:
- Ao longo das últimas gerações, as armas nucleares
levaram as super-potências a encontrar formas menos violentas de resolver
conflitos.
- A economia global deixou de ser à base de bens
materiais para ser à base de conhecimento. Como resultado, a rentabilidade
da conquista diminuiu.
- Ocorreu também uma mudança cultural: pela
primeira vez na história, o mundo tornou-se dominado por elites que vêem a
guerra como sendo terrível e evitável.
- A pólvora tornou-se menos letal do que o açúcar:
mesmo tendo em conta todos os tipos de conflitos, nas duas primeiras décadas
do século XXI a violência humana matou menos pessoas do que o suicídio,
acidentes de automóvel ou doenças relacionadas com a obesidade.
- Grande mudança no próprio significado do termo
"paz": durante a maior parte da história, significou apenas
"a ausência temporária de guerra ", mas nas últimas décadas,
passou a significar "a implausibilidade da guerra".
- Isso tem-se reflectido nos orçamentos: nas
últimas décadas, os governos de todo o mundo têm-se sentido
suficientemente seguros para gastar uma média de apenas cerca de 6,5% dos
seus orçamentos nas suas forças armadas (enquanto gastam muito mais na
educação, cuidados de saúde e assistência social).
Mas o facto de isso resultar de uma
escolha humana também significa que é reversível. Devido a esse facto, a ameaça
russa de invasão da Ucrânia deve preocupar todas as pessoas na Terra. Pois caso
volte a ser uma norma países poderosos aniquilarem os seus vizinhos mais
fracos, um resultado óbvio é um regresso à lei da selva:
- A nível nacional isso significaria um aumento
acentuado das despesas militares à custa de tudo o resto (o dinheiro que
deveria ir para os professores, enfermeiros e assistentes sociais iria, em
vez disso, para tanques, mísseis e armas cibernéticas).
- A nível internacional isso prejudicaria a cooperação
global em problemas como a prevenção de alterações climáticas
catastróficas ou a regulamentação de tecnologias disruptivas como a
inteligência artificial e a engenharia genética.
Caso se acredite que a mudança é
impossível, a lei da selva dita que a escolha é entre ser a presa ou o
predador, e a maioria dos líderes irá querer ficar para história como o
predador alfa.
Caso se acredite que a mudança é possível,
aquele líder que escolher arruinar o nosso maior feito, ficará para a história
como aquele que, depois de já termos saído, nos levou de volta para a selva.
A única constante da história humana é a
mudança. E isso é algo que talvez possamos aprender com os ucranianos: apesar
da história, da pobreza e de obstáculos aparentemente intransponíveis, os
ucranianos estabeleceram uma democracia. A sua democracia e a "nova
paz" são frágeis e podem não durar muito tempo. Mas ambas são possíveis e
podem atingir raízes profundas. Tudo se resume a escolhas humanas.
*
E o nosso leitor, que leituras sugere?